As dores de cabeça crónicas das nossas tias

Desde 1991 que entre os dias 25 de Novembro e 10 de Dezembro de cada ano, se celebram os ‘16 dias de ativismo contra a violência baseada no género’. Esta é uma campanha internacional com o fim de consciencializar sobre a violência baseada no género, especialmente aquela praticada contra a mulher e a rapariga.

Não acontece todos os anos, mas quando posso participo em ações coletivas no âmbito da campanha. O que sim faço todos os anos, é aproveitar este período para refletir sobre tipos de violência baseada no género que eu possa praticar, sofrer, tolerar ou minimizar.

Este ano, a minha atenção foi para as múltiplas histórias assistidas e contadas de mulheres que quase todas as noites sofrem de dores de cabeça ou de alguma outra dolência. Frequentemente esta dor de cabeça é justificação para não se engajarem em atividades sexuais com os parceiros, marido ou namorado. Durante muito tempo, não dei o devido valor a estas dores de cabeça crónicas, mas agora consigo conectar alguns pontos e ver que elas são claramente gritos de socorro. Mas são gritos tão baixinhos, feitos num espaço considerado ‘sagradamente’ privado, que muitas vezes passam desapercebidos.

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Carta 10: O SIM é sempre necessário

Querido Cossa,

Noutro dia ouvi-te a conversar com um amigo, não é que eu quisesse escutar a conversa, mas pronto, estava por perto e o assunto sequestrou a minha atenção e fiquei meio que involuntariamente atenta a vossa conversa por uns minutos.

O teu amigo se queixava de um safanão que ele levou da esposa porque há pouco tempo atrás ele tinha feito sexo com ela, enquanto ela dormia. Que ela tinha acordado no meio do ato e quando se deu conta do que estava a acontecer desembaraçou-se como ela melhor pôde da situação e ameaçou denunciar-lhe por estupro. O teu amigo não entendia a reação da esposa, disse que no princípio a achou exagerada, mas que agora a achava inadmissível porque ele é no fim das contas, esposo dela. Ele dizia que como esposo ele não deveria lhe pedir autorização para lhe penetrar, que afinal casaram para quê!

Notei que tu de forma um pouco tímida lhe disseste que bom, se ela estava a dormir ela não tinha consentido com aquele ato sexual, então que em teoria era estupro sim. E, estou 100% contigo. Mas notei pouca firmeza da tua parte, não tinhas aquela firmeza que tiveste por exemplo quando um amigo teu te contou que tinha batido na namorada porque ela tinha lhe ‘estressado’, como se fosse algo natural. Lhe ameaçaste de acabar com a vossa amizade se ele continuasse com aquele comportamento. Por isso te escrevo esta carta, para apoiar a tua posição e reforçar que o comportamento do teu amigo é 100% inadmissível.

Estando casadas/os ou não, o consentimento sempre deve anteceder as relações sexuais. A ideia de que as mulheres devem estar sempre sexualmente disponíveis para os maridos/ parceiros/namorados (e alguns pensam que mesmo para estranhos) é machista. Vem da crença patriarcal de que as mulheres pertencem aos homens e quando se casam já nem digo, se fosse permitido algumas pessoas as utilizariam como garantia para empréstimos bancários.

O corpo de qualquer mulher pertence só a ela e, portanto, só ela pode decidir como o usar. Este poder de decisão se estende a sexualidade dela. Não importa se estamos a falar do marido/esposa, namorado/a, parceiro/a – sempre tem que se pedir o consentimento antes de iniciar qualquer atividade sexual que envolva o corpo da outra pessoa. Não importa se o casal se ‘aqueceu’ as 14:00 horas e o assunto ficou interrompido. Se as 21:00 horas uma das partes estiver interessada tem que consultar se a outra parte ainda está a fim. Não pode assumir que porque havia vontade a tarde, a vontade ainda existe e com a mesma intensidade a noite.

E no caso do teu amigo, a esposa dele estava a dormir! Portanto, está claro que ela não pode ter consentido e, por outro lado, provavelmente ela nem estava lubrificada, o que significa que deve ter sentido dor, sem contar com o receio que deve ter tido de outro tipo de consequências que surgem da prática do ‘sexo seco’.

Por muito esforço que eu faça, não consigo encontrar nenhuma situação em que um parceiro possa fazer sexo com a sua parceira sem o consentimento desta. Se ele está com tesão e ela não, ele é o principal responsável pela satisfação sexual dele – ele que aprenda a sentir prazer com o sexo não penetrativo e sobretudo a dar-se prazer. Não importa se ela não tem vontade há 1 mês ou mais, têm que conversar e encontrar soluções ‘ganhar-ganhar’. Devem descobrir o que bloqueou a libido e procurar soluções de a desbloquear que funcionam para ambos.

Já ouvi alguns homens dizerem, “mas ela foi dormir sem calcinha, era sinal de que ela queria mesmo sem o ter dito”. Não, Não, Não! Em primeiro lugar dormir sem calcinha é saudável para as vulvas, elas passam todo o dia dentro de uma calcinha, as vezes coberta por uma meia calça e/ou uma calça e, a noite pode ser o único momento que se tem de permitir a vulva respirar. Por outro lado, mesmo que ela estiver a dormir nua, o/a parceiro/a deve lhe acordar para perguntar-lhe se também tem vontade. E isto se refere a todo o tipo de estimulação e toque das partes íntimas da parceira assim como de penetração de qualquer tipo (pénis, dedos, brinquedos sexuais, etc.).

Se ela não acordar, paciência! É melhor ele tentar noutro momento!

Se ela disser não, paciência! É melhor ele tentar noutro momento!

Se ela fizer algum som enquanto estiver a dormir, mas não fica claro se é um SIM, paciência! É melhor ele tentar noutro momento!

É muito importante teres claro que quando se trata de estupro não existe um espaço ‘cinzento’, é mesmo preto ou branco. É ou não estupro, nunca mais ou menos. E se não há consentimento para a prática do sexo, também não há dúvidas. É estupro! Eu sei que tu sabes disto, mas nunca é demais repisar.

Com amor, Eu