As dores de cabeça crónicas das nossas tias

Desde 1991 que entre os dias 25 de Novembro e 10 de Dezembro de cada ano, se celebram os ‘16 dias de ativismo contra a violência baseada no género’. Esta é uma campanha internacional com o fim de consciencializar sobre a violência baseada no género, especialmente aquela praticada contra a mulher e a rapariga.

Não acontece todos os anos, mas quando posso participo em ações coletivas no âmbito da campanha. O que sim faço todos os anos, é aproveitar este período para refletir sobre tipos de violência baseada no género que eu possa praticar, sofrer, tolerar ou minimizar.

Este ano, a minha atenção foi para as múltiplas histórias assistidas e contadas de mulheres que quase todas as noites sofrem de dores de cabeça ou de alguma outra dolência. Frequentemente esta dor de cabeça é justificação para não se engajarem em atividades sexuais com os parceiros, marido ou namorado. Durante muito tempo, não dei o devido valor a estas dores de cabeça crónicas, mas agora consigo conectar alguns pontos e ver que elas são claramente gritos de socorro. Mas são gritos tão baixinhos, feitos num espaço considerado ‘sagradamente’ privado, que muitas vezes passam desapercebidos.

Na minha opinião, as dores de cabeça crónicas estão diretamente relacionadas com 2 pressupostos do patriarcado:

  1. Os interesses e necessidades dos homens, no geral têm prioridade sobre os interesses e necessidades das mulheres. Existem alguns matizes, influenciados pela raça, a classe, a orientação sexual, o lugar de residência, etc. Por exemplo os interesses de um homem negro, financeiramente pobre, que não fala inglês têm menos valor que os de uma mulher branca, financeiramente rica e que fala inglês.
  2. As mulheres, especificamente os seus corpos, servem para satisfazer os interesses e necessidades dos homens no geral e, por conseguinte, são sujeitas a pertencer aos homens. Existem alguns sistemas e instituições que afiançam essa posse. Por exemplo, o casamento. Nesta instituição, existe a expectativa de que a mulher esteja sempre sexualmente disponível para o seu parceiro, marido ou namorado. O contrário não se observa, pelo menos não no mesmo sentido. Mesmo que se espere que os homens tenham disponibilidade para se envolverem sexualmente com a parceiras, eles têm muita maior escolha de dizer ‘hoje não’.

Os nossos processos de socialização que vão ensinando o patriarcado às mulheres, como se fosse algo natural são tão fortes e enraizados que muitas mulheres crescem acreditando que a ordem natural das coisas é mesmo essa – ela e o corpo dela estão em segundo plano e que ela terá satisfação plena na vida quando encontrar um homem ou pior, quando for escolhida por um homem para o satisfazer.

Neste contexto, a ideia de que as mulheres estão sempre sexualmente disponíveis para os seus parceiros, uma ideia tão desconetada da realidade de muitas mulheres, criam inúmeras oportunidades de ocorrência de violência contra as mulheres. Ter que fazer sexo sem vontade porque o parceiro tem vontade, sabendo que sentirá dor, sabendo que apenas sentirá prazer, é sofrer violência. Não poder dizer “não, hoje não me apetece” ou “não me apetece desta ou daquela forma” ou “ainda não estou suficientemente excitada”, sem sofrer represálias, é sofrer violência. Para muitas mulheres que se encontram nesta situação, esta dinâmica significa muitas vezes praticar sexo sem estar lubrificada, porque a penetração é feita quando ele e não ela, está pronto; significa ser tocada nas suas partes íntimas sem ter vontade ou sem estar excitada, o que não é nada prazenteiro; significa desenvolver ou reforçar um medo aos corpos dos homens por os perceber como violentos o que afeta as chances de sentir prazer sexual com um homem.

O pior é que em muitas ocasiões não é possível expressar estas frustrações nem aos membros mais próximos da família nem as amizades mais próximas. São vistas como frívolas, de mulheres ingratas, que não reconhecem a ‘sorte’ que têm por terem um parceiro ou marido e também, porque contradizem a crença generalizada de que “é necessário fazer sexo para manter o relacionamento”.

Assim sendo, para muitas mulheres a única solução para se desembaraçarem de uma situação que não podem negociar é ficarem doentes. Parece que adoecer ainda é um direito humano das mulheres. As dores de cabeça que podem representar um receio real do que irá acontecer quando o casal for ao quarto, acabam durando a vida inteira. É uma maneira de o corpo e a mente gritarem, “já não estamos a aguentar. Esta situação nos desumaniza!”

Mesmo assim, infelizmente as dores de cabeça não são garantia para algumas mulheres, de que não terão de praticar sexo indesejado com os parceiros. A pressão do parceiro e por cumprir o papel atribuído as mulheres, relacionado com essa disponibilidade sexual, pode ser muito forte. Para algumas, os analgésicos para as dores de cabeça também ajudam a ‘aguentar’, porque as vezes ainda não se recuperaram das gretas e inchaços na vagina que resultaram da última sessão forçada, e devem estar disponíveis para mais uma sessão de sexo por obrigação. A falta de vontade e/ou o cansaço, acabam por ser superados pela obrigação.

Esta injustiça é um problema de toda a sociedade – são as nossas avós, tias, mães, amigas, irmãs, primas, filhas, sobrinhas, enteadas, vizinhas, que sofrem silenciosamente a falta de controle sobre os seus corpos e suas vidas; que receberam de Deus/Universo/Alá ou qualquer outra força divina, um órgão que serve apenas para lhes dar prazer sexual mas que algumas nunca o sentiram; que estão condenadas a praticar sexo por obrigação para o resto de suas vidas; e a sofrerem violência sexual de forma recorrente como se fosse algo normal.

Mas também são os nossos avôs, pais, tios, amigos, irmãos, primos, filhos, sobrinhos, enteados, vizinhos, que estupram de forma recorrente as mulheres nas suas vidas. Estupram sim, porque se não há consentimento é estupro. E pior, não vêm nada de errado nisso ou acham normal no contexto dos relacionamentos íntimos. Se convertem dessa forma em criminosos, mas a sociedade está tão cega pelas normas que dão privilégios aos homens que prefere ignorar os crimes que estão a ser cometidos nas nossas famílias contra pessoas que amamos, por pessoas que amamos.

Por este motivo, a solução para superar esta injustiça deve ser coletiva, deve questionar as masculinidades dominantes, mas também deve questionar as relações de poder injustas onde claramente as mulheres estão em desvantagem. Os nossos tios nunca têm dores de cabeça a noite.

Ilustrações num edifício na cidade de Cape Town, 2013

Entre muitas outras coisas, precisamos ensinar aos nossos meninos e homens que:

  • Eles só são donos deles mesmos e que não há espaço na nossa sociedade para um ser humano decidir sobre a vida de outro ser humano só porque nasceu com uns determinados genitais;
  • Eles são os principais responsáveis pelo prazer sexual deles – o sexo não penetrativo é empoderador;
  • O sexo a dois ou múltiplo deve ser consentido, sempre, independentemente do estado civil e do relacionamento que possa haver, e quando não o é, é crime;
  • Devem se comunicar também no sexo com a parceira para que o sexo seja prazenteiro para ambos;
  • Devem respeitar o ritmo da parceira no sexo e não estarem prontos para penetrar porque ele já está excitado – ela também precisa estar excitada para ter prazer.

Entre outras cosias precisamos ensinar as nossas meninas e mulheres que:

  • O casamento não é sinonimo de sucesso de uma mulher, é apenas uma escolha de algumas pessoas, mas não é um indicador de sucesso na vida;
  • A sexualidade delas deve servir para dar prazer a elas antes que aos homens;
  • Se toquem e sintam prazer sexual antes de tentar sentir com outra pessoa, incluindo seu parceiro, marido ou namorado;
  • O sexo deve ser sempre consentido e quando não o é, é crime;
  • Está bem dizer não;
  • Precisamos conversar mais sobre este tema, e chamando-lhe pelo seu verdadeiro nome.

Contudo, isto estaria apenas a tocar a ponta do icebergue do nosso sistema patriarcal. Precisamos fazer mais, cada qual no seu meio e com os recursos que tem, para desmantelar o patriarcado e construirmos sociedades mais justas, onde não é necessário desenvolver dores de cabeça por não poder expressar os sentimentos e desejos relacionados com a sexualidade.

Não poder fazer sexo, o desejando, é triste mas ter de fazer sexo por obrigação é trágico!    

Compartilha o amor

5 thoughts on “As dores de cabeça crónicas das nossas tias

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *