As ferias do corona virus

Tenho a impressão que este ano, 2020, será um ano muito interessante. Estamos ainda em Maio e já vivemos experiências tao intensas, tao novas, tao assustadoras, tao desafiantes. O virus corona ou corona virus mudou (e não sabemos por quanto tempo) a nossa maneira de relacionar-nos entre nós, a nossa forma de estar em público – ao se nos exigir que pratiquemos o distanciamento social e o uso constante de mascaras. Mas as situações nas quais nos encontramos por causa do surgimento deste virus, parece que também veio reforçar algumas injustiças sustentadas pelo patriarcado.

Muitas pessoas acreditam que no período pós corona virus os seres humanos seremos mais (ambiental, económica e socialmente) responsáveis, que seremos mais solidários e justos, que o sistema de escravidão que sustenta o capitalismo selvagem que nos rege não será mais tolerado ou ainda que adoptaremos um estilo de vida mais pausado, mais consciente e centrado no desfrute do presente.

Eu identifico-me com estes possíveis resultados e gostaria de vê-los materializar enquanto ainda estiver fisicamente neste mundo. Mas, me pergunto se isso será realmente possível porque não me parece que estamos a questionar as relações de poder injustas.

Precisamos mesmo de uma linguagem belicosa?

A linguagem predominante de muitos políticos durante esta pandemia tem sido uma de guerra, de luta contra um inimigo. Vários lideres políticos usam/ usaram linguagem belicosa para se referirem à luta contra o COVID-19. Ouvimos afirmações como:

“Estamos em guerra contra o virus”

“Estamos em guerra com outros países para conseguir material sanitário chinês”

”Estamos em guerra contra um inimigo invisível e requer a nossa mobilização geral”

“Hoje não há noticias da linha da frente”

Mas será que estamos mesmo em guerra contra o virus? Será que esse virus tem pretensões geopolíticas, quer dominar o mundo? Ou será que o virus, como qualquer outro virus só quer sobreviver? Penso que estamos numa luta contra o virus, como a luta contra o HIV ou a desnutrição, mas uma guerra? E qual é a vantagem de se usar linguagem de guerra na gestão do novo virus? Algumas pessoas argumentam que dado que as medidas de resposta à emergência não terão sucesso se os cidadãos e cidadãs não alterarem a sua conduta, esta linguagem exige dos cidadãos e cidadãs que se comportem como soldados numa guerra, com disciplina em relação também ao cumprimento das ordens. Porém, há países como a Alemanha que sem necessidade de os politicos usarem linguagem belicosa conseguiram que os cidadãos e cidadãs respeitassem a ordem de isolamento social. E, tiveram muito melhores resultados que os países onde os politicos declararam guerra ao virus (por exemplo, Estados Unidos da America, Espanha, França).

Imagem extraída de uma publicação no Facebook

Então será que existem motivos mais profundos para se usar uma linguagem belicosa durante esta emergência causada pelo COVID-19? Não sei, mas penso que devemos estar atent@s à certas dinâmicas. A linguagem de guerra cria medo, temor, desconfiança. Justo o contrario do que precisamos neste tempo que é mais solidariedade, confiança e cuidados mútuos entre nós. O medo nos faz acreditar que os fins, sejam eles quais forem, justificam os meios, incluindo violações de direitos humanos. E já vimos o exemplo do Quénia, onde as medidas de repressão por parte da policia para impor o cumprimento da ordem de isolamento social já causou mais mortes que o próprio virus. O estado de medo também pode permitir que se aprovem leis e instrumentos como meio imprescindível para ganhar a dita guerra contra o virus, que não seriam facilmente aprovados noutro momento. Estas podem ser leis para limitar certas liberdades por exemplo. Por outro lado, a linguagem de guerra também coloca o Estado como o único centro de poder capaz de desenvolver soluções aos problemas enfrentados. Algo que pode ser utilizado para legitimar o abuso do poder por parte do Estado ou mesmo a intromissão do Estado na vida privada podendo por exemplo controlar e monitorar as actividade no telefone ou na internet das cidadãs e dos cidadãos sem o seu consentimento. E uma pergunta que vai ficando cada vez mais alta é se os lideres politicos que usam linguagem belicosa agora, a irão abandonar quando o estado de emergência acabar. Ou será que o uso desta linguagem agora é preparação da cidadania para o que será o novo normal?

Por outro lado, tudo parece indicar que esta crise e as consequências a curto e longo prazo que dela virão, requerem soluções e estratégias mais profundas que procurem resolver problemas sistémicos. E uma solução militar não poderá resolver problemas que reflectem a podridão e a insustentabilidade do sistema económico e social no qual vivemos. Portanto, sim, é necessário responder ou mesmo reagir à urgência mas assumindo a necessidade (também urgente) de abordar questões profundas de fundo social, económico, da falta de investimento no sector da saúde, de desigualdade de género, de acesso aos recursos e de justiça social num sentido mais amplo. O uso de linguagem militar não nos conduz à busca deste tipo de soluções.

Eu sinto falta em muitos lideres politicos (sobretudo nos países do hemisfério sul) de uma linguagem mais de cuidados, que ressalta o reconhecimento pelas pessoas mais afectadas pela crise, com um foco no reforço da solidariedade, com medidas concretas de apoio para as pessoas que veem os seus meios de sustento diminuírem ou desaparecerem. Também noto ausência de uma linguagem de cuidados na gestão da orientação de se trabalhar desde casa. Obviamente esta medida em países como Moçambique aplica-se à uma percentagem muito pequena da população. A maior parte das pessoas não têm um trabalho que poderiam desempenhar desde casa, então esta medida as vezes implica perder o emprego ou simplesmente continuar a trabalhar. Por exemplo, nos países onde é comum ter empregada domestica, algumas pessoas dispensaram as suas empregadas durante este período, mas nem todas continuam a pagar-lhes o salário enquanto estiverem em casa. Isto para as empregadas domésticas, é equivalente a ter perdido o emprego. No caso de quem estiver a trabalhar desde casa, a sobrecarga de trabalho para as mulheres aumentou. Muitas delas não só têm que continuar a trabalhar 8 horas diárias desde casa, como têm que monitorar as crianças que agora estão a estudar desde casa, têm que se encarregar das tarefas domésticas (que se calhar antes eram delegadas à empregada domestica) e no final do dia se calhar tem que ter energias para namorar com o companheiro.

Por exemplo no caso de Moçambique o governo desenvolveu uma mensagem apoiando o papel da mulher na prevenção do COVID-19. O que faz sentido e é fantástico porque 70% das pessoas que trabalham no sector da saúde ao nível global são mulheres. Na linguagem militar de moda, as mulheres é que estão na linha da frente na luta contra o vírus. Porém, essa mensagem não veio acompanhada de compensações para essas mulheres profissionais – não houve aumento salarial ou de algum subsidio de sobrevivência que complementasse o salário magro que recebem, por exemplo. Tão-pouco tenho visto medidas para ajudar as famílias a navegarem por esta situação, conscientes da necessidade de mulheres e homens partilharem as responsabilidades domesticas, nem para ajudar as empresas a repensarem outros modelos de trabalho que reflictam a triste realidade de que a principal responsabilidade pelas tarefas domesticas ainda recai sobre as mulheres. E, ainda está a pressão vindo de todos os lados para se aproveitar estes tempos para aprendermos coisas novas, fazermos um curso, selecionarmos a roupa que ja não usamos para doar, arrumar o armário da cozinha, etc. Mas isso só faz sentido para quem estiver de ferias do corona. Para quem ficou com as responsabilidades acrescidas, este plano fica muito difícil.

Os ‘ajudantes ocasionais’

Isto é inacreditável, mas ainda existe hoje, em 2020, gente que diz que a mulher doméstica por opção ou por imposição ‘não trabalha’. Para estas pessoas, estas senhoras, não fazem nada. Se fossemos a contabilizar todo o trabalho que elas fazem, e se tivessemos um sistema que as remunerasse por esse trabalho, muito provavelmente elas ganhariam muito mais que os que ‘trabalham’.

Além disso há quem pensa que existem trabalhos ou responsabilidades fixas de mulheres e de homens na casa. Não encontro nenhuma tarefa domestica que só o homem ou só a mulher podem realizar pela sua natureza. Me ocorre apenas, o caso das mulheres que escolhem ter crianças e que escolhem amamentar, só elas poderiam amamentar. Mas além disso as expressões ‘trabalho de mulher’ e ‘trabalho de homem’ que parece estar a ser reivindicado recentemente não faz sentido nos dias de hoje, é mais do que sabido que todos esses trabalhos são aprendidos, então não é que uma pessoa consegue realizar determinados trabalhos porque nasceu com uns determinados órgãos sexuais, mas sim porque esse ser humano aprendeu a realizar essas actividades.

Em alguns casos, ao estarem as famílias mais tempo em casa, aumentou também a carga de trabalho doméstico, por exemplo, nalgumas famílias preparam-se mais refeições do que antes deste período, portanto, existe a necessidade de tanto ‘os que trabalham’ como ‘as que não trabalham’ partilharem as tarefas domesticas. Tenho escutado alguns homens falarem de ‘ajudarem as esposas’ ou reclamarem por as esposas lhes exigirem que ‘ajudem’ nas tarefas domésticas. Quem ajuda não se sente responsável pela tarefa e apesar de que alguns homens estão a participar mais nalgumas tarefas domésticas, se comportam como ajudantes ocasionais. Não se sentem co-responsaveis pelos trabalhos domésticos, apenas ‘ajudam’ naquelas tarefas que lhes são mais convenientes e quando lhes é conveniente.

Como é que estas dinâmicas e percepções irão desafiar a crença entre as dualidades

Homem = ser superior

Mulher = ser inferior

Espaço publico

Espaço privado
Responsabilidades atribuídas:

Trabalho produtivo (considerado provedor) Trabalho comunitário (sobretudo quando é remunerado/compensado)

Responsabilidades atribuídas: Trabalho reprodutivo Trabalho produtivo (mas não é considerada provedora) Trabalho comunitário (sobretudo o não remunerado/ compensado)

Tomador de decisões (sobre o publico e o privado)

Seguidora, tomadora de decisões sobre alguns aspectos privados

Mais valor (a pessoa e o que ela faz)

Menos valor (a pessoa e o que ela faz)

Por outro lado há pessoas que consideram que este período de distanciamento social são férias – ‘ferias do corona’. Claro, se as pessoas não têm que trabalhar nem para o capital e nem para cuidar da familia, então sim, estão de férias. Mas, para muitas mulheres, porque na maior parte das nossas sociedades o trabalho doméstico ainda não é partilhado por igual, este período de facto significa mais trabalho. Isto significa para muitas, ou baixar simplesmente a produtividade (arriscando reduzir o rendimento) ou trabalhar a noite e de madrugada quando a familia está a dormir. Muitas empresas, aplicaram a  medida de trabalho a partir de casa mas não consideraram que a produtividade desde casa, estando toda a familia em casa não tem como ser a mesma. Isso significa mais uma carga para as mulheres.

Se uma parte da sociedade não consegue ver que esta situação não significa que todo mundo está de ferias, como é que vamos dialogar sobre a divisão injusta do trabalho que faz com que uma parte da sociedade se sinta sobrecarregada e outra se sinta de férias? Utiliza-se uma linguagem que não reconhece o trabalho dos cuidados, que pode estar relacionado com que se considera que este trabalho é das mulheres, e ainda não se dá o mesmo valor às actividades realizadas pelas mulheres, que as realizadas pelas mulheres.

Reinventando o pneu furado

Se não estamos a desafiar os papeis tradicionais de mulheres e homens, o trabalhar desde casa (para quem pode), ou estar em casa, ou sair para trabalhar fora de casa mas deixando crianças em casa que normalmente passariam uma parte do dia fora exige um nível de gestão, adaptação e solidariedade que se não for para escravizar necessita de uma forma de pensar, de estar e de fazer diferente por parte dos homens e das mulheres.

Em muitas famílias, a situação de emergência causada pelo COVID-19, está a reforçar a divisão do trabalho por sexo e a re-valorização do trabalho produtivo por encima do trabalho reprodutivo, o qual nos coloca numa posição que dificilmente levará a que se mudem as dinâmicas de poder existentes. Pelo contrario, aumentam as desigualdades, a insegurança e a subordinação das mulheres à um papel secundário (tanto na relação entre mulheres e homens, como na relação entre mulheres de status diferentes). Mesmo nas famílias onde a mulher é a principal provedora, nestes tempos que se passa em casa os homens não assumiram necessariamente a liderança nas responsabilidades domésticas. Continuaram com a contribuição que já faziam e a carga extra de tarefas recaiu sobre as mulheres. É como se a crise estivesse a reforçar a ideia falsa de que os homens são os principais responsáveis por colocar o pão na mesa e as mulheres as principais responsáveis por cuidar da familia. Vejamos alguns exemplos:

  1. José trabalha num mercado que agora está fechado. A sua esposa Ana é empregada domestica e foi dispensada (no primeiro mes recebeu o salário inteiro, no segundo mes so vai receber 50%). O casal tem 3 crianças em casa que precisam ser alimentadas, geridas e acompanhadas nos estudos diariamente. Quem assume esta responsabilidade é a Ana. Além disso, actualmente José exige da Ana fazer sexo 2 vezes por dia porque ela agora ‘tem tempo’ e ele passa a maior parte do dia na conversa atras da barraca do vizinho.
  2. O Pedro é gestor numa instituição financeira que não aplicou medidas que permitissem aos trabalhadores trabalhar desde casa. Ele continua a trabalhar a tempo completo como o fazia antes da crise do corona virus. O Pedro vive com a Alexa com quem tem 2 crianças. A Alexa é directora de Marketing e publicidade numa das principais agencias de publicidade do país e está como todos os colegas a trabalhar a tempo completo desde casa. Como as crianças estão em casa e dispensaram a empregada, durante as manhãs ela consegue trabalhar durante 1 hora. Depois precisa preparar as refeições do dia e dedicar pelo menos 1 hora de estudo com as crianças que estão a estudar desde casa. A tarde consegue trabalhar 2 horas. O Pedro regressa para casa as 18, atira-se para o sofa e reclama do cansaço do dia. Entre todos preparam o jantar e põem a mesa. Depois do jantar o Pedro põe as crianças a dormir e assiste televisão durante umas duas horas antes de recolher. A Alexa trabalha durante 4-5 horas antes de ir dormir.

O mais provável é que essas mulheres saiam da crise completamente desempoderadas. Ainda por cima o corona virus reduziu a mobilidade das pessoas e nalguns casos a relação com as redes de apoio. Para algumas famílias, passarem tanto tempo em casa juntos, com recursos limitados ou inexistentes significa aumento de violência domestica e insegurança.

Neste período também ocorreram coisas muito boas de solidariedade, por exemplo países africanos onde alfaiates e costureiras fabricaram máscaras com restos de panos e ofereceram pelos seus bairros; pessoas que a pé, em bicicleta ou mota e carregando uma coluna divulgaram informação sobre o COVID-19 nos seus bairros e em línguas locais; por todo o mundo vemos iniciativas para reduzir a exposição de pessoas idosas fazendo compras por elas; em Moçambique muitas pessoas doaram dinheiro para compra de mascaras para o pessoal sanitário nos hospitais públicos, etc. Estas e outras experiências são muito bonitas e indicam que os valores de solidariedade e compaixão estão vivos nas nossas sociedades. E oxalá, continuemos assim.

Porém, nem os actos de solidariedade nem as dinâmicas que as famílias têm adoptado durante este período estão a desafiar as injustiças de género. O que significa que os que tinham vantagens e privilégios antes da pandemia, irão continuar a te-las. Para conseguirmos o tal mundo melhor que deverá emergir desta situação será necessário também coragem para questionar e mudar as relações de poder entre homens e mulheres, o valor que damos ao trabalho doméstico – aos cuidados e a partilha das responsabilidades entre homens e mulheres na sociedade.

Para que o ‘novo normal’ seja melhor será necessário derrubar o patriarcado e este momento nos lembra tristemente que ainda estamos longe de o conseguir. Continuamos a usar uma linguagem que não representa as experiências de tod@s, a usar as experiências dos homens como se fossem a referencia do ‘normal’; a falar de trabalho de mulheres e trabalho de homens como se fosse algo natural; à relegar as mulheres ao trabalho doméstico pouco valorizado ou trabalho profissional de baixa remuneração; a considerar os homens como ajudantes ocasionais nas tarefas domésticas e não co-responsaveis; a falar de ferias do corona quando uma parte da sociedade está sobrecarregada de trabalho e/ou ficou sem rendimento. Fazendo o que temos feito até agora, de não abordarmos de fundo as desigualdades de género nas nossas sociedades, não creio que será possível ter um novo normal onde haja mais justiça social e onde nas próximas ondas do corona virus todos e todas possamos fazer férias do corona.

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