16 de outubro de 2022
Querido Cossa,
Como tu sabes, nos últimos 5 anos tenho procurado reinventar-me profissionalmente porque o trabalho que faço e muito gosto de fazer, implica ter disponibilidade para viajar. E depois de ter parido as nossas crianças, e ter vontade de estar mais próxima delas nos primeiros anos das suas vidas, gostaria de manter as viagens em trabalho ao mínimo. Enquanto eu procurava maneiras de continuar a trabalhar no que gosto sem necessidade de viajar tanto, ocorreu a pandemia da COVID. A qual, apesar de todos os desafios que trouxe, também criou oportunidades para mim profissionalmente.
Praticamente todas as organizações e agências com quem costumo trabalhar deram um giro para o trabalho remoto. Já não era necessário negociar para não viajar, ou fazer parceiras com colegas que me permitissem não realizar o trabalho de campo.
De todas as formas, mantive algumas viagens: 2-3 de trabalho por ano e 1 viagem de férias sozinha ou com amigas. Durante algum tempo não era complicado gerir as viagens porque trabalhavas cuidando da família e da casa. Porém quando voltaste a trabalhar fora de casa, notei que passaste a tratar as minhas viagens de trabalho como se fossem algo opcional, mesmo as que estavam marcadas antes de começares a trabalhar.
Por exemplo, quando eu falava da minha última viagem e da necessidade de nos organizarmos contratando ajuda para cuidar das crianças durante as horas que estivesses a trabalhar, por um lado insistias em repetir inúmeras vezes que o teu trabalho era muito importante para ti, que estavas no período probatório e que não ias poder negociar mais flexibilidade para acomodar os horários das crianças na minha ausência. Como se apenas o teu trabalho fosse importante e, por conseguinte, eu é que me deveria ajustar. E os compromissos que eu já tinha assumido? Esses eram menos importantes que o teu compromisso com o teu trabalho novo? Compromissos esses que são os que nos sustentavam quando eu era a única provedora.
Por outro lado, assumiste que era minha responsabilidade encontrar e contratar a pessoa ou pessoas que nos ofereceriam os serviços de baba. Quando falei contigo para te dedicares mais nessa busca, fizeste ouvidos de mercador, até que deixei claro que eu não deixaria de viajar por não termos bab. Que se com todos os contactos que estava a fazer, não conseguisse ninguém, que terias de te gerir com as crianças na minha ausência. É nesse momento que te mexeste e descobriste que uma das filhas de um amigo teu faz babysitting.
Felizmente conseguimos várias mãos para cuidarem das crianças quando estivesses a trabalhar.
Porém, ainda estou a tentar compreender a tua atitude e me pergunto se ela não reflecte preconceitos que possas ter sobre o teu papel na nossa família como homem e sobre o meu papel como mulher. Será que achas que o teu trabalho vale mais que o meu e por isso a minha vida é que tem de mudar porque tu agora também estás a trabalhar?
Será que no fundo, no teu subconsciente ainda paira a ideia de que o homem é o provedor – que acho que leva a consequente expectativa de que o teu trabalho é mais importante, mesmo quando eu esteja a ganhar mais? O que exatamente está por detrás da tua atitude nesta situação? O primeiro que me ocorre é que isso são manifestações de diferentes tentáculos do machismo que ainda não desaprendeste.
- Ideias machistas que valorizam mais o trabalho produtivo que o reprodutivo;
- Ideias machistas que ligam a identidade masculina com o trabalho produtivo e papel de provedor;
- Ideias machistas que consideram o papel produtivo das mulheres como secundário e quase como um hobby que complementa o papel reprodutivo considerando-o primário para as mulheres;
- Ideias machistas que te conferem o privilégio da valorização do teu trabalho – qualquer que seja – e consequentemente o direito de decidir quando o meu trabalho produtivo passa a ser menos importante que o teu.
Cada vez que coisas semelhantes acontecem, e que sinto que é mais uma camada do teu machismo a descobrir-se fico chateada. Mas também reconheço que há males que veem por bem, neste caso, penso que esta situação nos oferece a oportunidade para vermos essa camada de machismo, vermos aquelas coisas que ainda precisam ser desaprendidas se queremos ter um agregado familiar que se orienta pela justiça.
No lugar de ficares na defensiva após leres esta carta, peço-te para utilizares esta oportunidade para tentares ver as coisas em ti que não sabias que estavam aí, reflectires sobre elas, descobrires o que queres desaprender e te movimentares (através das tuas acções, pensamentos e atitudes), na direcção de uma nova versão de ti mesmo. Uma versão de ti com uma camada a menos de machismo e de preconceitos aprendidos.
Com amor,
Eu
Carta 1: Partilha de responsabilidades