Os apelidos de mulheres são uma utopia?

Em muitas sociedades antigas os nomes tinham um significado. As vezes representavam o que se esperava que as pessoas fossem ou alguma característica do nascimento ou da personalidade ou ainda as circunstancias nas quais as pessoas tinham nascido. Em muitas sociedades actuais, perdeu-se o sentido explícito dos nomes e de facto, muitas pessoas não conhecem o significado dos seus nomes. Porém, implicitamente ainda prevalecem alguns significados, por exemplo, dá-se nomes de flores apenas às meninas e nomes de guerreiros apenas aos meninos.

Mas, os apelidos continuam a ter um peso importante na identidade das pessoas. Eles falam da nossa historia e dão informação extra sobre a nossa origem e identidade. Os apelidos nem sempre existiram e, tão pouco existem em todas as culturas. Historicamente, eles surgiram por questões administrativas, como forma de organizar e classificar as pessoas em grupos, em função da profissão, do lugar de nascimento, do clã, de características físicas, etc. O sistema de apelidos predominante em Moçambique foi herdado da época colonial, influenciado pelos costumes existentes na maior parte das sociedades europeias daquela época, patriarcais. O que significa que o apelido que se adopta é o do pai.

Como feminista sou a favor do direito de escolha. De as mulheres e homens por exemplo, poderem escolher se mudar ou não o seu apelido ou acrescentar o apelido do/a cônjuge quando se casam. Ou, de um casal poder escolher dar às suas crianças o apelido da mãe ou do pai, ou de ambos e na ordem que escolherem.

Por vários motivos, o meu parceiro e eu decidimos registar as nossas crianças com o meu apelido. Ele próprio foi registado com o apelido da mãe (apesar de se apresentar com o apelido do pai porque é ‘Africano’, enquanto o da mãe é ‘Português’ – mas este é outro assunto) e pretendíamos continuar com essa ‘tradição’. Para mim também significa desafiar algumas normas machistas como as que consideram que as crianças pertencem à família do homem e reconhecer que os meus ovários valem tanto como os testículos do meu companheiro e que por esse motivo temos total liberdade de dar-lhes qualquer um dos apelidos.

Isto faz muita confusão para algumas pessoas que não entendem sobretudo a posição do meu parceiro. Pessoas chegadas à ele lhe disseram coisas como que ele:

  • não foi ‘homem’ ao ter aceite registar as crianças com o meu apelido e não o dele;
  • não tem orgulho de ser homem ao não passar o apelido dele;
  • está a humilhar @s filh@s e que no futuro terão problemas de identidade;
  • que o apelido da mulher não garante a continuidade dele como homem, etc.

Como se registar o apelido fosse sinonimo de responsabilizar-se e cuidar das crianças. Como se o tal apelido da mulher não tivesse valor. E, é precisamente sobre esse apelido da mulher que gostaria de reflectir.

Existem apelidos de mulheres?

Recentemente li um livrinho que gostei de uma jornalista feminista chilena, Arelis Uribe, intitulado ‘Qué explote todo’. É uma colectânea de artigos que ela publicou durante um período de tempo e, um dos textos expressa a frustração dela ao dar-se conta que no Chile os apelidos das mulheres sempre são de homens.

Nesse momento também senti uma certa frustração ao descobrir que em Moçambique não é diferente. Os apelidos das mulheres são de homens. Nas sociedades matrilineares no norte e centro do país, o apelido que se dá às crianças é o do tio ou irmão da mãe. O apelido define-se através da mãe, mas pertence à um homem. No sul e centro do país, onde predomina o patriarcado, o apelido adoptado é o do pai das crianças.

No caso da nossa família, nós pensávamos que estávamos a dar um apelido de mulher às nossas crianças, mas estávamos bem enganados. O meu apelido é do meu pai. O apelido da minha mãe, é do pai dela. O apelido da minha avô é do pai dela. Não consigo encontrar na historia da minha família um apelido que tenha originado numa mulher. O apelido da mãe do meu companheiro também é do pai dela.

Este descobrimento deixou-me mesmo em baixo. Neste aspecto o patriarcado está tão bem enraizado que não vejo como poderíamos ter evitado continuar uma linhagem patriarcal na escolha do apelido das nossas crianças.

A minha mãe conta que os avós e as avôs dela não usavam apelidos. Eles e elas usavam nomes individuais e eram conhecid@s como ‘fulan@ de tal, do clã X). Foi só quando tiveram necessidade de ir à escola, que tiveram de ser registados e passaram a ter apelidos porque essa era a exigência da administração colonial. Então por exemplo o avó que se identifica como ‘Zefanias (nome próprio) do clã dos Mahozes’, passou a usar Zefanias como apelido. O nome passou a ser apelido e, o mesmo passou com os irmãos (Navesse e Matandalaze). O mesmo não aconteceu com as irmãs do Zefanias do clã dos Mahozes porque elas não foram incentivadas à estudar e por isso nunca tiveram de ser registadas. E, mesmo casadas (não oficialmente) continuaram a utilizar os seus nomes próprios, mas as suas crianças foram registadas com os apelidos que os seus maridos haviam adoptado.

Inventemos novas regras por favor

Será que esta poderia ser uma solução para passarmos a ter apelidos de mulheres? Será que poderíamos passar a dar à cada criança um apelido que seja só seu? Será que assim as mulheres poderão também passar apelidos que não têm nada a ver com apelidos de homens?

A jornalista Chilena achava que para solucionar este problema era necessário colocar-se uma bomba e reiniciar o mundo. Parece uma proposta radical. Mas se calhar a profundidade deste problema requer soluções radicais para se conseguir mudanças duradouras.

Segundo o Código de Registo civil Moçambicano, uma pessoa pode ter até 4 apelidos da família. O que significa que se poderia dar qualquer um dos apelidos à criança (como nós fizemos) mas, se esses apelidos foram todos passados pelas figuras masculinas de ambas famílias, continuamos a funcionar com base nos homens.

Uma amiga contou-me que no costume do povo Bakongo em Angola, quando as crianças nascem, o nome da mãe passa a ser o apelido da criança. Por exemplo um senhor chamado José Cândida, será porque a mãe se chama Cândida. E, segundo esta amiga, é por este motivo que existem muitas pessoas da etnia Bakongo com apelidos que correspondem à nomes próprios portugueses de mulheres. Esta me parece um sistema interessante mas, no sistema jurídico moçambicano o nome próprio da mãe ou do pai não pode ser utilizado como apelido da criança. Apenas os apelidos das famílias da mãe e do pai.

Se calhar nos países onde é permitido mudar de nome, seria possível mudar o nome e o apelido e assim iniciar-se linhagens com origens em apelidos de mulheres. Se calhar também podia-se criar apelidos inventados que juntem os apelidos da mãe e do pai (como é permitido nos Estados Unidos da América) e também se iniciar linhagens com origens em apelidos de amb@s mãe e pai.

Não sei se as minhas crianças quando forem adultas terão a mesma preocupação, mas espero que se quiserem que isso seja possível legalmente. Que possam inventar e escolher apelidos através dos quais possam começar a contar uma historia diferente. Eu não estou apegada nem aos meus nomes, nem ao meu apelido, não sinto que as minhas crianças deixariam de estar vinculad@s a mim se tivessem apelidos diferentes. O apelido nem é meu mesmo!

E porquê é tão importante ter apelidos que originam em mulheres? Por uma questão de justiça, de nos conectarmos também com essa parte das nossas identidades, de dar visibilidade às mulheres que nos trouxeram ao mundo e nos cuidaram, porque até no nome e apelido é importante termos escolhas verdadeiras que nos libertam do protectorado patriarcal. As mulheres somos mais da metade da população de Moçambique e não temos apelidos que originam em nós. Não temos apelidos de mulheres. Não me parece justo!

Como solucionamos esta situação?

Sinto-me impotente e presa à um sistema injusto.

Gostaria mesmo de poder tocar nalgum botão que diga ‘reinício’.

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